sexta-feira, 15 de abril de 2011

30 Cartas, 30 Dias #11

Dia 11 - Um falecido com quem gostava de conversar

Que bom seria se Deus, por um segundo de descuido, tivesse te feito eterna.


Nem precisava ser uma pessoa falecida com quem eu gostava de conversar. A pessoa mais importante da minha vida já não se encontra por aqui. E é a carta que eu estava mais ansiosa pra escrever, porque eu sei o quanto ela me dói. Por isso precisei de um tempo sozinha, pra poder chorar mais um pouco a falta que ela me faz.

É engraçado pensar que minha mãe faleceu há pouco mais de três meses. Falecida, morta... palavras tão pesadas que não traduzem nem de longe a dor que é perder a mãe. Então prefiro escrever não diretamente pra ela, mas sobre ela.

A lembrança mais antiga que tenho da minha mãe é de quando eu ainda era filha única e ela estava grávida do meu irmão. Lembro que ela trabalhava numa empresa chamada Alladin - aquela das garrafas térmicas - e todos os dias me trazia um par de meias com um mini vasinho e uma flor de plástico dentro. Provavelmente não era todos os dias, mas eu me lembro de esperar ela chegar em casa, em pé em cima do sofá, olhando pra fora enquanto ela colocava o carro na garagem.

Minha mãe sempre foi uma mulher "prafrentex", como ela dizia. Nunca ficou sem trabalhar. Lutava por tudo o que ela acreditava. Defendia os filhos e o marido com unhas e dentes, como uma bela leoa. Conversava sobre tudo com todos.

Minha mãe foi loira, morena, ruiva. Foi magrela, gostosa, gordinha e gorda. Mas sempre foi linda. Meu Deus, como ela era bonita! Nunca saía de casa sem maquiagem, nunca saía de casa de chinelos - e tinha verdadeio horror às sandálias Havaianas. Ela também participou de tudo quanto é tipo de religião - e me levava junto, porque eu tinha que me apegar à alguma coisa. Foi católica, umbandista, evangélica, espírita, frequentou quartos de cartomantes e astrólogas. Mas a crença dela era uma coisa fora do comum, a fé que ela tinha era uma coisa que dava forças pra todo mundo em casa.

Minha mãe sempre apoiou a mim e ao meu irmão em tudo. Mas nunca se esquecia de nos dar represálias quando estávamos errados. Olha, eu apanhei muito da minha mãe. Quase posso sentir cada tapa, cada chinelada, cada cintada que eu tomei. Mas eu topava passar por isso tudo de novo por mais trinta anos só pra poder passar mais uma hora com ela.

Lembro da alegria da minha mãe a cada vestibular que eu passei. Um dos orgulhos dela era a minha inteligência. Ela se gabava de ter uma filha capaz de passar em qualquer exame de faculdade sem fazer cursinho.

Minha mãe ficou feliz quando me viu com meu primeiro namorado. Ela detestava ele, mas adorava os seus pais. E tínhamos uma relação família X família das mais gratificantes. Minha mãe era aluna da mãe dele, então elas se viam todos os dias e acabaram se tornando confidentes. Impossível um namoro comum, cheio de safadices, num retrato desses. E esse era o grande alívio das duas famílias, ninguém temia que a menina de 14 anos dormisse no mesmo quarto que o menino de 16, já que os dois pais e as duas mães ficavam de olho e trocavam informações entre si.

Quando minha mãe tinha 37 anos, ela e meu pai se separaram. Dezoito anos de casamento. Na madrugada em que tudo aconteceu, um pouco antes de meu pai ir embora, estávamos apenas eu e minha mãe acordadas. Ela chorava e me pedia colo. Mesmo assim, eu fui embora com meu pai. Ela "perdia", de uma tacada só, o marido e a filha mais velha. Foi a partir dali que ela e meu irmão viraram os melhores amigos um do outro.

Durante muito tempo eu invejei a relação do meu irmão com ela. Não entendia porque eles eram tão ligados, e me sentia deixada de lado. O que me faltou entender é que eu praticamente excluí minha mãe da minha vida durante a minha adolescência.

Aí eu engravidei. E corri pra casa e pro colo dela. Ela ficou estarrecida, afinal, eu era a menina-prodígio, isso não poderia acontecer. E ela se tornou a melhor avó do mundo. Acho que nem eu sou capaz de amar tanto a minha filha como minha mãe foi. Ela tinha um coração tão grande, que cabiam os filhos, os irmãos, a neta, os amigos e até os genros e noras que ela conheceu.

A última vez que vi minha mãe viva, ela estava se recuperando de uma doença terrível. Foi quando eu deixei São Paulo pra me aventurar aqui no Rio Grande do Sul. Na última vez que nos vimos, ela me abraçou tão forte, chorou tanto... e me desejou toda a felicidade do mundo. Ela não pôde nem ir ao aeroporto, e isso me fez uma falta terrível.

A última vez em que nos falamos, foi numa sexta à noite, em que eu telefonei pra pedir desculpas por não ter ligado naquela semana, e disse que ligaria pra ela no domingo de manhã. Telefonei, conforme o combinado, mas ela já estava internada. Depois disso foram duas ou três semanas de angústia, sem saber o que virtia pela frente. Chorei copiosamente durante a virada do ano novo, porque era a data que ela mais prezava. Sempre fez questão de passarmos o Reveillon com ela. E ela faleceu no segundo dia do ano. Qualquer Ano Novo agora carrega um pesar, uma saudade, um arrependimento. Me arrependo amargamente por estar longe quando ela partiu.

Apesar da família pequena, bastante gente foi ao enterro dela. Ela era muito querida. Sempre foi considerada briguenta, estourada... mas ela apenas não conseguia lidar com coisas erradas. E me deixou esse traço, também não tolero esse tipo de coisa. Mas ao mesmo tempo, ela era uma pessoa alegre, risonha, que fazia graça de tudo - até da própria condição. Nunca perdeu o bom humor e a esperança.

Agora eu me sinto só. Completamente desamparada. Minha vida deu uma reviravolta, e era nessa hora que minha mãe entrava em cena, me pegava pela mão e me levava pra casa dela, preparava um bolo quente de chocolate com leite gelado e opinava sobre a minha vida - sem me deixar retrucar. O jeito dela me fazer ficar quieta era me encher de comida. Ela já teria mandado meu irmão vir me buscar, passaria uma lição de moral nas pessoas que fizeram a filhinha dela sofrer, e me faria jurar nunca mais fazer a mesma coisa. Agora não tem bolo, não tem leite, não tem colo.

Não tenho mais pra quem telefonar pra pedir receitas, pra dividir minhas vitórias e minhas incertezas. Não tenho mais aquela mulher intrometida que cuidava da minha vida. Não tenho mais as brigas semanais, a bateção de portas. Não tenho mais aqueles olhos esverdeados me olhando como seu eu fosse uma grande obra, não tenho quem me diga que eu posso tudo o que eu quiser, e que eu sou capaz, que sou forte. Não tenho ninguém pra falar mal do meu ex-ex-namorado e elogiar o atual ex. Não tenho quem olhe pra mim e diga como eu estou mal cuidada e pinte meu cabelo, faça as minhas unhas e dê risadas do cotidiano.

Sonhei com ela algumas vezes seguidas há algum tempo atrás. E acordo desesperada do mesmo jeito que acordei quando sonhei que ela tinha sido assassinada. Não consigo mais dormir direito, me alimentar adequadamente. Falta ela pra me puxar a orelha e dizer que devo cuidar melhor de mim.

A dor da perda da minha mãe ainda é a mesma que eu senti na hora em que eu soube. Essa dor não diminui. Esse vazio não se preenche. Apenas estou me adaptando a ela, me acostumando com essa sombra que estará comigo até o fim. Vou tentando reconstruir minha vida ao redor dessa dor avassaladora, do jeito que dá. Não tenho mais quem me ensine como se faz isso.

Dizem que a vida continua. Só se esqueceram de explicar como fazer para viver de verdade sem uma mãe por perto. Porque, sem ela, eu só estou sobrevivendo.

2 comentários:

Sandra Camargo disse...

Eu não sei o que te dizer, Lu. Só quero que saiba que te gosto demais e que estou te abraçando com toda a força nesse momento. E que sei que vc deve ter chorado muito ao escrever esse texto. E eu to chorando contigo agora.

Paco disse...

Poxa, que doloroso. Mamãe está viva, e algumas vezes me pego pensando em como será se ela se for primeiro que eu. E só o pensamento de tal coisa dói.
Muita força pra ti. Foi apenas uma passagem e logo vcs se encontrarão novamente. =)