terça-feira, 25 de agosto de 2009

O fim

“O que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer
(.)
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais”

Você olha para a parede branca à sua frente, vira a cabeça para a esquerda, olha a porta marrom gasta do armário; agora vira para o lado direito e não vê o céu estrelado e a copa da árvore junto à janela. Agora olha de novo para a frente, para o futebol na TV (que nunca te interessou) pendurada na parede. Você respira com dificuldade enquanto espera pela fisioterapeuta e, antes dela, o copo de suplemento. Você aumenta o volume da TV para ouvir melhor o jogo de futebol, 'seu companheiro das quartas à noite', e deixa de lado os diversos livros que jamais acabará de ler.

Você tem a alma transtornada e reclama que não gosta de canja de galinha. Reclama dos médicos, dos familiares, da salada de frutas. Você não quer morrer, mas começa a desconfiar de que não está melhorando e que talvez não se recupere mais, mas faz com que essa ideia passe rápido. O futebol ajuda nisso.

Passam os dias, algumas vezes eu passo pela sua casa. Vou viajar. Vou dar um novo rumo à minha vida, vou me lembrar que sou, também, mãe e namorada. Você ficará com meu irmão como sempre tem sido, o tempo todo. Você olha para mim e suas últimas palavras, balbuciadas sob a dificuldade respiratória, são 'não me abandone aqui sozinha'.
Fico com raiva, quero berrar que a mãe que você foi não lhe dá o direito de me dizer isso e que ficar na sua casa com o cheiro de urina, doença e morte que você trouxe é uma tortura. Mas me controlo e respondo, calmamente, que você não está abandonada, que terá companhia o tempo todo, e que domingo à noite estarei de volta.

Eu estou triste, sim. A morte é definitiva, e saber que ela anda nos rondando me assusta.

Na lembrança mais antiga que tenho com você, eu estou andando com você de mãos dadas na rua, à caminho da escola, debaixo de um guarda-chuva que nos protegia de uma fina garoa. Naquele dia eu só queria ir com o meu guarda-chuva pra escola, e lembro que essa história acabou comigo faltando à escola, deitada na cama chorando. Eu tinha marcas pelo corpo e não tinha muito menos que 4 anos. A partir daí, sua figura materna seria para mim uma quase permanente ausência.

Enquanto vivi dependendo de você também tive um dos períodos mais difíceis que atravessei, que vejo agora como uma densa, escura e turbulenta nuvem. Você foi ausente por mais de 20 anos e agora exige canja de galinha, atenção e amor? Depois daquela conversa em que você pediu perdão pela mãe que foi, e eu perdoei [ambas fingindo ser sinceras], aconteceria, quem sabe, um milagre? Você seria capaz de deixar o egoísmo de lado e olharia para os filhos, para a neta, para as pessoas em volta? Você conseguiria, além de exigir tudo para si, doar-se um pouco, apesar da doença? Você e eu, no fundo, sempre soubemos que não. Você tem uma alma muito, muito atormentada. E, se antes havia pelo menos a casca de uma mulher pequena, esforçada e com alguma beleza, agora a doença apodreceu esta casca. Há apenas o céu estrelado com a árvore na janela, o futebol, o cheiro de urina, doença e morte.

É assim que termina.